quinta-feira, 19 de julho de 2007

Indigestão

Clarissa acordou sem inspiração naquela manhã, bem típica de estação, bem seca e bem fria. Ligou o computador, preparou um café quentinho e preto, ao contraste da branca xícara de porcelana chinesa de sua avó. Sua avó era uma mulher serena, marcada pelo tempo de uma maneira positiva, crescente; uma mulher que soube viver apesar das tempestades.

Samanta acorda com ressaca e mesmo assim sente-se bem hoje. Qualquer dia que se acorda com carícias correndo pelo seu corpo, que desperta com sede, mesmo cansado após uma noite de amor, é motivo para estar feliz. O café fraco e mais amargo do que o costume, desce macio como o rosto perfeito pelo seu ventre.

Clarissa deveria escrever mais um capítulo de seu livro onírico,...Onírico porque só ela acreditaria nele. Faltava coesão, coerência, afinco no desenvolvimento; mas a moça do cerrado, de pele branca, que nem a tal porcelana da xícara, insistia nos tais escritos, arrastados em mais uma manhã de agosto.

Essa manhã é como uma montagem de como deseja ser seus dias daqui para frente, sem mais desculpas e toques que só parecem sinceros após discussões. Samanta está cansada disso, cansada do corpo que deseja e que parece sempre mais ocupado com passado e prazos ao invés de seus desejos.

O telefone toca e é sua mãe; outra grande mulher que ensinou a Clarisse o que é ser de rocha por fora e cristal por dentro. "Não se deve mostrar as lágrimas, elas mancham em demasiado", diria a mãe, em algum momento. Combinaram um almoço, no mesmo restaurante de sempre, e com a comida de sempre.

Neste momento, enquanto a água cobre corpos que parecem apenas um em meio ao banho, ela pensa em como é bom chorar de prazer, como é perfeito deixar um corpo entrelaçado ao seu e dizer que ama e está apaixonada mesmo não estando. Ela sorri quando sente o orgasmo chegar ao mesmo tempo que o telefone toca.

Já na sobremesa - uma saborosa torta alemã - Samanta chega, acompanhada de sua nova namorada. Clarissa desaba. Percebe o ar apaixonado que contamina o local, sente os tais anjos tocarem cornetas ao ver as duas e engasga com um pedaço da torta. À francesa, a aspirante a escritora sai, e volta para mais um dos seus capítulos. "Indigestão", seria o nome dele.

Essa menina me abraça com tanta ternura que sinto que irei começar a chorar, simplesmente por me sentir amada, desejada, prioridade aos seus olhos. Seu beijo é quente e doce como uma sobremesa cara. Um sentimento que havia esquecido depois de tantos anos sendo o toque quente a olhares frios. Desejaria que fosse Clarissa o formigar destes toques, mas está feliz por não ser. Eu que preciso me sentir viva, isso é importante. Provavelmente Clarissa está mais feliz em meio a sua dor, escritores escrevem melhor assim, não é mesmo?

Texto de Maíra Brito e Eduardo Ferreira.

Um comentário:

Jaqueline Lima disse...

Jogo fascinante de palavras e contrastes. Se fosse para atribuir uma ilustração ao conto: a branca xícara de porcelana chinesa enlevada pelo vapor de café. Parabéns aos dois: a última vez que uma obra me fez fechar os olhos e atribuir-lhe uma imagem foi Quincas Borba - Machado de Assis (E, isso já tem um tempinho!....)

Pérfuro-Contundente: palavra-chave p/ um texto que me trasportou para uma "manhã de agosto".
Simplesmente fantástico.
E, realmente, está mais do que provado que escritores escrevem melhor em meio a dor.
Lindo! Ou melhor, lindos!