terça-feira, 14 de agosto de 2007

Acontece

Quinta-feira de final de outubro, eram uns míseros dois, quase três meses para mim, cinco, seis para ele. Combinamos um bar, sempre o de sempre, porque bar é a democracia que funciona: quem bebe bebe, quem não bebe, não bebe. A gente bebia e muito.

Além da vasta apreciação pelo etílico, tínhamos outra coisa em comum: a dor. Costumava dizer que a dor era o que nos unia; ambos tinham perdido um amor, seja pelo desgaste, seja pela precocidade, não importava, tanto fazia, ainda era dor, ainda estava exposta, ainda doía.


Chega a menina com nome de flor:"Oi, tudo bom? Blábláblá, posso sentar aqui com vocês, enquanto meu amigo não chega?" Claro, bar é democracia, lembra? Se conhece, pode chegar chegando, nem precisa ser amigo. Em falar em amigo, os amigos dela chegam: um desenhista com uma cara peculiar e uma quase atriz, que me lembrava uma menina das Letras; gente boa até, até começar a chover.


Eu, já alcoolizada, me lembrei que tinha prometido não beber muito, era dia de semana ainda.... promessa desfeita. Subia as escadas cambaleante, conversava com outras na fila do banheiro, afinal, todo banheiro feminino de bar que se preze deve haver fila - assim surgem assuntos e reclamações. Lá na fila me veio umas lembranças, olhei pro relógio e pensei, "Ele deve estar acordando a essa hora". Ele tinha partido a pouco tempo pro estrangeiro, queria achar um rumo na vida e foi se perder. Há um mês não tinha notícias dele, deixei de procurar, se a saudade tivesse que ficar que ficasse muda.


Volta do banheiro – alívio- a chuva começa a cair; claro, o verão se aproximava e aquele clima maluco da cidade de chove-sol escandante-chove tinha chegado; todos para dentro do bar. Ficamos de pé, com um engradado quase cheio do nosso lado. A menina com nome de flor e seus amigos começam a cantar: Cartola, Jorge Ben...Eu e meu amigo cantamos algumas, bebemos outras e bem, chega o momento de ir.


Ainda chove, um pé d'água desaba e o sono vem sutilmente, acelerando a partida. Impossível enxergar, melhor parar o carro. "Posso parar num lugar especial?" Sim, meu velho companheiro respondeu. Parei o carro em uma dessas entrequadras de Lúcio Costa e comecei a contar o início do fim. Ele me retornou com lembranças suas, do seu primeiro beijo com ela e de outras recordações que insistiam em ficar. Aí, me perguntou se ela já havia arranjo outro. Claro que não, não é assim que se tira alguém da sua vida, falei. E eu fazia eternas reclamações da não-saudade que, o agora estrangeiro, sentia. Não choramos dessa vez, não foi necessário, o céu fazia isso por nós. Olhava no rosto dele e a chuva, latente no vidro, se refletia lá; era como se eu pudesse ver a alma dele chorando.


Minha mãe costumava dizer que chuvas eram bênçãos e eu tentava acreditar nisso sempre. Naquele mesmo dia da tromba d´água eu tinha visto dois arcos-íris, e também tentei acreditar neles. Acreditar que era um sinal de sorte, bons presságios.


Depois de muita chuva, cheguei em casa e dormi, pesado com um quê de álcool; por volta das cinco da manhã acordei assustada, me lembrando de todo o papo do carro, não consegui mais dormir. Lembrei da minha dor e da dor alheia, da minha saudade e da saudade dos outros; pensei como tanta gente pode estar tão perto e tão longe. Talvez, subitamente, uns anjos me acordaram, tentando dizer que a chuva, os arco-íris, que tudo eram sinais, até mesmo os adjacentes que surgiram na mesa do bar: o chato desenhista em cima de mim ou quase atriz em cima do meu amigo. Sinais para manter a esperança, para ter fé no tempo, ou para simplesmente não parar de beber, mesmo quando a chuva cai.

5 comentários:

Daniel Mello disse...

Bebendo(bastante hein?!) pra remoer a saudade amordaçada...
Gostei
=*

Anônimo disse...

Os copos vazios e um céu cheio. Boa esperanças, boas memórias. E a infinidade certeza das mudanças.

Nunca vou me esquecer.

Beijo

Salve Jorge disse...

Meus joelhos tremem
Ante tanta poesia
Querem prostar-se
Diante de toda essa maestria
As notas de uma chuva
E a democracia barzística
Tudo cabe como uma luva
Nessa vida holística

Pouco teria a dizer
E tanto tenho que louvar
Que mal consigo tecer
Algo digno de se levar

Só sei que mereces anjos e avisos
E mesmo estrangeiros subsumidos
Numa saudade não revelada
Já que saudade é daquelas coisas fadadas
A nos corroer, quer se queira
Quer não
Mereces arco-íris
Também acho chuvas uma benção
Sabedoria de mãe não se nega não
Mesmo que em meu aniversário
Outubrístico
Nunca chova
É fato consumado

Enfim, mereces tanto
Mesmo o pranto
Que quaisquer parcas sintaxes
Serão redundâncias desnecessárias
Para lhe agraciar de adjetivos as palavras
Por isso brindemos
À chuva
À esperança
À vida
À dança
Ao bar
Ao seu falar, que não canso.. aliás me vicío cada vez mais, em escutar...

P.s - Sim, sim, sim... meu nome é Jorge.. não é o único nome que tenho, nem a única alcunha que me incutiram, mas é um que me serve deveras bem.. e se quiseres saber também, sou sim de Capadócia...

Jaqueline Lima disse...

Vc, Maíra, não sabe as lágrimas de dor causadas simplesmente por vc. Já imaginou que a pessoa que mais se ama tem a sua dor publicada por amar outra? Obrigada por publicar a alma do homem que eu amo chorando por outra.

Jaqueline Lima

Jaqueline Lima disse...

Mas como já dizia meu amado poeta:

"Eu sei, ah eu sei, que o meu amor por vc é feito de todos os amores que já tive. E que todos so amores que eu játive foram passando vc de mão em mão, de mão em mão até mim entre cantos, súplicas e vociferações. Cuspindo na sua frontee enfeitando o seu rosto de grinaldas" Vinicius de Moraes